quarta-feira, março 26, 2014

João não tinha fim (miniconto)



João não tinha fim (miniconto)
por Rafael Belo

Aquela noite para João não tinha fim. Também não tinha lua, estrelas ou luzes artificiais. Era o maior breu já visto por João. Uma escuridão total desde o início do dia. Aliás, era forçado dizer dia... Já amanheceu noite. As nuvens por toda parte se juntaram à neblina. Nem cinzas eram as nuvens. Eram de um negro ainda não identificado como cor. Toda esta escuridão parecia absorver João. Então, ele pegou o carro e saiu. A ideia era encostar o acelerador no asfalto, mas nem com farol alto enxergava um palmo adiante do veículo. Não havia também qualquer som. Era uma adaptação, mas qual... João ainda não sabia.

Os faróis começaram logo a oscilar... Isto não impediu João de acelerar. Ah e como ele acelerou. Esqueceu dos freios e afundou os dois pés no acelerador. Pareceu funcionar, mas havia uma pressão constante ao redor dele. E agora eram seus olhos... Os olhos de João oscilavam. Melhor. Pesavam profundamente. Pequenos pontos pretos apareciam como fogos de artifícios queimados na retina de João. Ele se sentia consumido pelo passado, pelo porvir... Até este momento... Presente. Pela primeira vez ele pensava no limite de tempo no qual vivia. Começava e acabava a cada instante para fazer parte do passado e outro João se fazer presente. O outro João se soltara. Estava tremulando ao vento...

Mas a esta altura do tempo, se estender bandeira branca era acreditar muito no outro quando acabava de começar a acreditar em si... Mesmo... Era um soltar demorado como subir do abismo sem fundo de costas e contra uma tempestade. Na verdade João era deflorado por todos os orifícios como sacrifício pelo não feito. Por tanto agarramento e apego, estava pagando. Pagava à prestação. Cada uma um sofrimento, por isso tanta escuridão. Era a pressão de seu cérebro diante de tanta cena na vida, tanta encenação... Uma adaptação do seria... Um seria tal João, mas não foi...

Este João se sentia sem limites, estava quase certo deste título, mas só viria de verdade depois de passar pelos obstáculos desviados. No entanto, já era algo, as amarras já começavam uma a uma a soltá-lo porque ele já se soltava delas. Aos poucos voltava o som, a luz e as lágrimas. Eram muitas lágrimas. Elas se soltaram depois de uma década agarradas bem no fundo como se não existissem. Elas existiam e tinham uma fonte inesgotável e sim eram boas. João não tinha fim... E assim, no instante do clarear da mente. Visualizou sua porta enferrujada e a própria casa abandonada. O João original estava lá... Arrombou sua porta enferrujada depois de florir direto do cimento do chão.


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