sexta-feira, março 14, 2014

Outros lados (miniconto)


Outros lados (miniconto)
por Rafael Belo

Seus olhos doíam. Não pela luz forte, mas pelo constrangimento. Não se olhava no espelho há anos e a dor só aumentava. Uma vergonha. Venâncio, o Ven, jazia em vida seu olhar vazio. Arrepiava quem passava por perto. Como um surpersticioso mau presságio... Ele parara com tudo. Decidiu se acorrentar a livros e fotografias. Aos poucos foi perdendo o vigor. Não por falta de água ou alimentação. Sempre aparecia alguém enxergando uma causa justa em seus feitos e o hidratava. Ninguém o deixava sem comer. Mas durante todos estes anos, as palavras, as paisagens e os silêncios o alimentavam ainda mais.

Fracasso e desistência passavam a rodear sua imaginação como personagens animados tonteados. Seu centro de gravidade se foi e quase a sanidade acompanhou. Ele parecia sempre embriagado. Mas seus olhos estavam sempre arregalados. Como estava em um local isolado, mesmo no centro da cidade, as autoridades decidiram deixá-lo em paz. Uma decisão polêmica. Gerando debate pelo mundo sobre direitos, livre-arbítrio, o poder do Estado, público e privado. Porém eram só palavras vazias. Ven se transformou em um caso de estudo. Um lunático preso ao único olhar da lua.

Sua história era desconhecida. Apenas conseguiram descobrir duas coisas: perdera tudo e tudo eram livros e imagens. Cada livro tinha um valor. Era um sentimento de Ven, um detalhe tanto do seu passado quanto do futuro e ele se perdeu nestes detalhes. Suas imagens se moviam como poesia viva mesmo sob seu olhar vazio... Lá no fundo ele começava com os primeiros alvos raios. Quando a alvorada chegava ele era branco, uma página viva esperando as primeiras palavras do dia. Assim ia se autocolorindo com palavras novas... Ele as enxergava nas imagens, paisagens.


Quando estava realmente só, alisava as correntes. Gostava daqueles elos. Sentia o metal frio em algumas partes, morno em outras, mas sempre quente na sua pele. Seu olhar, então, parecia ressuscitar aos poucos, um brilho de cada vez, uma projeção de sombra em novas ângulos, uma cor a cada hora, uma variação de palavras a cada minuto, uma intensidade poética a cada vírgula, em todo silêncio... Então... Chegava à noite. Preta, azul ou cinza, às vezes branca... Naquela imensa tenda montada - pelos políticos da cidade e demais autoridades - para protegê-lo. Ele queria morrer. Já não sabia mais a própria idade. Porém, quando a madrugada avançava e a vontade se intensificava, o primeiro alvo raio solar o acariciava e o fazia nascer novamente com o mesmo sol, mas diferente. Era este detalhe o segurando por teias invisíveis todos os dias, por todos os seus lados. Mas, algo sempre o alimentava. Porém, para o mundo, de repente, ele já não era novidade, não era notícia. Era parte da paisagem. 

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