sexta-feira, maio 23, 2014

A memória do paladar (miniconto) – por Rafael Belo




Poderoso não estava gostando da demora de seus humanos. Já tinha marcado seu território de várias maneiras. Agora iria castigar e destruir aquilo chamado por eles de calçados. Queria ver não obedecerem. Querem que eu lata, não lato. Sou chinês por adoção. Sou a espécie mais antiga de primeira origem Sibéria... me acham Shih-Tzu aaa? Aqui minha língua azul para vocês. Vocês precisam ser fieis a mim, pois sou fiel mas independente. Deixem-me na minha. Não vou deixar vocês entrarem. Assim, chegaram os humanos com a chuva. Não era pouca.

Rosnava Poderoso e caminhava como um tigre.  De um lado para o outro, de um lado para outro... Mas, nem um latido dava. Estava farto de carinhos, lacinhos, beijinhos, tosa... Deixou seu protesto por toda parte seus dentes marcavam cada um... Ao se aproximarem todos ganhavam a dentada e quanto mais bravos ficavam, mais assustador Poderoso parecia.  Então decidiu latir. Pouco, mas latiu. Era um som forte e amedrontador. Eles recuaram. Os três voltaram para o carro e acabaram, adormecendo lá. Acordaram reclamando e doloridos.

Não ficariam mais com Poderoso. Poderoso havia ido longe demais. Havia assumido a casa depois de seis meses silenciosos e distantes. Cuidava dos seus brinquedos, prato e caminha com um zelo... Ninguém ousava se aproximar. Não sabiam... Esperavam outra atitude. Não este gato gigante se portando como urso. Apoderando-se da casa e parecendo pedir silêncio e tranquilidade. Dominou todas as outras camas. As dos humanos. Eram todos refém deste poder. A beleza do cão.

Havia uma antiga família chinesa na região. Eles disseram aos humanos de Poderosos, este ser de uma personalidade particular. O Chow-Chow, principalmente o azul, era uma lenda tão antiga quanto a China e eles o tratariam como todos seus antepassados fizeram. Agora, nem doutor Pet resolvia Poderoso. Ele era uma iguaria. Especialmente a língua. Mas, nada disso foi dito para os ex-humanos de Poderoso. Eles o doaram. Reservados os chineses levaram Poderoso.

Passados seis meses de clausura e sendo alimentado apenas com grãos. Poderoso era outro. Ele sabia o próximo passo. Seu desgosto e indiferença aos desconhecidos de nada adiantavam, assim como percebia o poder ter subido a cabeça e não demostrou a loucura intensa pelos donos. Poderoso sentia... A brasa já estava com poucas chamas e era hora.  Não pensou em nada. Deixou aquela chuva de seis meses levar sua consciência para longe. Após a cerimônia, foi sangrado, carneado e desmembrado. Sua pele virou tapete. Mas aquela faminta família de tradição milenar chinesa, ainda tem no paladar a memória de cada  amolecido pedaço Poderoso.

Nenhum comentário: