quarta-feira, julho 16, 2014

declamará (miniconto) – por Rafael Belo









Ela acordava todo dia da mesma forma e inconvenientemente com o mesmo pensamento. Só não era de todo inconveniente porque... Bem ela não se lembrava. Amélia Jéssica passava pelas mesmas coisas diariamente, a diferença para ela era sempre ser novidade. Instintivamente ela não usava verbos no passado ou no futuro, às vezes nem no presente.

Podia sorrir comumente e estava presente. Naquele momento Amélia Jéssica nem conseguiria ser outra. Era ela, era agora. Fazia suas higienes, se alimentava, acessa o mundo virtual, confeccionava seu trabalho ali mesmo e o envia a quantos veículos pedissem. Repetia os dois primeiros invertendo as ordens e dormia. Ah, adorava passar seus momentos de folga viajando por meio daquela janela.

Não importava o tempo emprestado a ela pela janela. Amélia Jéssica conseguia sempre enxergar o sol. Podia ser inverno, outono, primavera e Amélia ainda assim enxergava o verão em tudo, por mais que preferisse o silêncio e a profundidade do inverno. Não o inverno brasileiro só de frio, quando o era. O europeu com muita neve, por mais que nunca tivesse passado por ele ou ela.


Amélia estava em coma há quase três décadas e nestes 30 anos quem ainda a conhecia morreu, quem era da família a esqueceu. Amigos e familiares ela fazia no cotidiano permitido pela sua memória. Era como viver em um Silo de centenas de compartimentos separados por profundidade de andar. Enterrada em si mesmo era feliz e apesar de acordar todo dia sorrindo ela não estava presente no próprio futuro.


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