segunda-feira, dezembro 05, 2016

Falta de verdade



por Rafael Belo

Foi um flash. Mais carros indo a toda velocidade em plena manhã de sábado e um casal de meia idade - ela morena, ele não – caminhavam na rua. É na rua! Um apoiava no outro em um meio abraço protetor. Não entendi a dinâmica possível ali, mas era óbvio ser uma prática constante o resultado daquela sincronia incrível. Ambos eram deficientes visuais e portavam bengalas brancas flexíveis tocando para todo lado o chão irregular. Os olhos deles estavam naquele movimento plástico e constante. Infelizmente a sensação, ao mesmo tempo de triunfo pela independência, era de indignação e medo por eles.

Segui com um olho à frente e outro no retrovisor. As calçadas sem piso tátil, irregulares, curtas em contraste com ruas largas esburacadas só demonstravam - e demonstram - o quanto a cidade cresce vergonhosamente para os veículos, para os prédios, para o fluxo de veículos e reduz os espaços para as pessoas. Não se fala de transportes capazes de agilizar e facilitar a vida dos cidadãos esmagados por motoristas mal educados, egoístas e com uma prática assustadora no trânsito. São só tarifas aumentando e limitando os direitos de todos. Aquele casal superava as deficiências do corpo e da cidade.

O fato simples de caminhar durante uma manhã, pensando bem, é cheio de limitações para nós que na pressa acabamos cegos e apenas desviamos dos obstáculos, olhamos para o outro lado e seguimos fazendo as mesmas coisas, reclamando dos antigos problemas, passando pelo caminho de ontem, hoje e amanhã empurrando a vida para o próximo dia mecanicamente conectados a rotina rezando para a sexta-feira chegar. Mais dos mesmos diariamente ignorando a própria limitação de reconhecer a olimpíada imposta pela cidade para superar fazendo alguma coisa.


Fico entre orgulhoso e pesaroso sem conseguir retirar da mente a imagem do casal com deficiência visual vivendo do apoio mútuo e sofrendo as consequências da cidade enfrentando em pé e de cabeça erguida, simultaneamente, o presente e o porvir na contramão do fluxo ignorante de veículos lotados de, praticamente, uma pessoa cada. Os vejo vir e depois continuar corajosos enxergando a vida com as mãos, os pés, o nariz e, principalmente, os ouvidos como nosso ser visual pouco ou nada entende. Fico lembrando que ainda vamos todos enxergar porque é preciso se privar para realmente compreender o que faz falta de verdade.

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