quarta-feira, abril 26, 2017

Suicídio diário (miniconto)




por Rafael Belo

Todo dia me mato aos poucos. Em você me suicido quando te permito me matar para eu sentir esta falsa aceitação, este falso carinho, esta falsa segurança, este falso amor... Tua atenção tendenciosa muda me cala. Tudo está claro e, claro, eu só podia ser Clara. Tenho medo de perder este tão pouco de você, então meu suicídio é também minha permissão de você cometer homicídio em mim. Morro de qualquer jeito e ainda assim você não estende a mão. Só se aproveita para depois me ocultar, excluir, bloquear, julgar... A vida me chateia e estou alheia a todo acontecimento. Tento entender aqui dentro, sabe? Esta angústia, esta dor, este peso sem fim de não sei o motivo, então me fragmento.

Não sei se aguento morrer aos poucos. Cometer suicídio é um jogo, um desafio me cortando, me fazendo matar outros, envenenando o mundo com a dúvida, a divergência, o poder sobre si mesmo... Suicídio deveria ser rápido. Uma dor só e pronto. Tchau! Mas carrego uma cruz de alguma parte de mim se matando por outro alguém. Este outrem nem sabe e, por isso, me mata de volta. Há tanta reviravolta e, finalmente, participo de algo. Faço parte de um grupo. Alguém me obriga a fazer alguma coisa, alguém me obriga a sentir na pele, alguém me castiga, alguém realmente manda em mim, este é o meu fim. Às vezes tudo me faz sentir magra demais, bonita demais, integrada demais, outras gorda demais, feia demais, excluída demais... Não me encaixo em nada. Clara: 16 anos e esquisita.

Talvez eu seja esta baleia azul e de alguma forma me desafie a finalmente chegar ao suicídio final. Olho no espelho e vejo um borrão. Escuto alucinações, vejo sons estranhos... Será possível alguém querer me escutar? Enxergar-me? Dedicar um tempo para saber quem sou? Meus pais só me cobram coisas e eu? Eu não sou uma pessoa? Não sou igual a eles? Será verdade: eles tiveram minha idade? Por que agem como se tivessem nascido adultos? O mundo mudou muito, mas o comportamento das pessoas ainda segue cruel, querendo impor, precisando expor a raiva acumulada, a humilhação passada, revidar de alguma forma... É possível aguentar sozinha? Não somos todos sós? Daqui vejo tudo. Sinto um poder antes nunca sentido. Sempre me senti diminuída, exposta, pequena e as curiosidade das pessoas é mórbida, além de vaidosa. Todas estão como eu: em uma gaiola sendo observadas, bebendo água suja e hipnotizadas pela correria de ter sempre de entregar produção. Temos noção?


Esta multidão lá embaixo se divide entre o coro de joga, joga, joga, àqueles me xingando tanto por demorar como àqueles por pensar em me matar e, finalmente, os desejosos de salvarem uma vida, de serem heróis ou simplesmente fazendo o trabalho a lhes caber... Não importa nada. Nenhum deles. Não os ouço, não me atingem e não estou enrolando, só estou esperando o sol se pôr e a lua cheia chegar. Veja está quase lá! O Sol se foi... Vem lua cheia, vem... Dia, noite e eu. Eles não vão chegar a tempo e já me matei há muitos dias... Sou sombra da sombra da desatenção. Agora vou correr para o outro lado. Nossa! Não achei ser tão rápida! Clara vai se apagar neste momento. Um breve rodapé fora do sistema.  

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