sexta-feira, maio 01, 2015

Ponto final


por Rafael Belo

“Não deveria estar lotado este ônibus. No dia do trabalhador e uma sexta feira... Feriados deveriam ser vazios como a maioria de nós”, pensa Silvio olhando para a multidão estranha ao seu redor em contraste a ausência lá fora. Mas, não havia bancos... Deixando espaço para ainda mais pessoas. O cobrador também era um espaço em branco ocupado. O motorista não se via, havia escuridãoem seu lugar.

Todo lugar deixado vazio é imediatamente ocupado. Não importa bondade ou maldade toda a complexidade sai da superfície destas definições por isso, a lógica não faz parte das ações e do coração. Um amontoado de sombras... Sombras de outras sombras. Este é (era) Silvio. Ele não deveria estar ali pela lógica. Mas, a vida não é matemática. Silvio havia morrido há pouco.

“Estou mesmo morto? Morrer é assim, então...? ” Questiona enquanto sente seu cheiro. Ele fedia mesmo quando vivo. Desde que a escassez de água começou até agora quando a substituíram pela dengue e os 50 anos da Globo. Ele vivia isolado, morria assim também. Isolado e desolado pela própria aridez. Antes não costumava olhar ninguém nos olhos...

Agora com seus olhos murchos e opacos o fazia e parecia ver a mesma ausência de vida no olhar de volta a fixar lugar nenhum. Eles não se mexiam mesmo na velocidade inesperada. Tão rápido ia o ônibus  que em algum momento Silvio achou ser parte do clandestino exibicionista clube 299 (km/h).


Quando conseguiu fixar o olhar nos borrões parados lá fora reconheceu muita coisa. Lembrava de não ter qualquer memória de como acabou sentado no fundo do ônibus. Então a única luz que conseguiu enxergar acendeu vagamente em seus escuros olhos: minha carona para a morte... Sexta-feira é dia de rodízio de carros... E viu vário oitos e noves (todos no coletivo) que o acompanhariam para o inferno deles no ponto final.

Nenhum comentário: