sexta-feira, outubro 30, 2015

Perda de si (final)


Corri e todos corriam mais até que o sol correu um terço do céu. Ninguém se aguentava e da mesma forma o vazio mental não permitia uma explicação para a correria. Olhavam para seus reflexos no lago onde agora estavam antes mesmo de matarem a sede. Não ventava. A água límpida refletia o céu de brigadeiro. O espelho natural de narciso nada significava para eles, pude perceber de imediato.

Começaram a medir os rostos uns dos outros e aqui estamos nós a maior multidão de anônimos que já existiu.  – O que foi que aconteceu? Foi a primeira sentença dita por todos eles ao mesmo tempo. Depois riram incontrolavelmente. Risadas nervosas, finalmente revelando uma situação assustadora. Mas, eles não estavam assustados de verdade e nem eu...!

Os relatos e as buscas minuciosas apontam a ausência de qualquer tipo de documentos de identificação. Nem sequer menção de qualquer fato capaz de nos dar uma pista aparecia nas buscas virtuais e, o mais estranho, não existiam mídias digitais. Se bem... Bem eu não conhecia nenhuma, mas tenho certeza... A humanidade confundia quem era, entre outras coisas... Será uma lembrança?

Estamos nós aqui. Um amontoado de alguém pensando ser ninguém. Sem sequer uma alma para mandar em nós, com vontade de nos moldar... Não há nada somado com coisa nenhuma, zero de informações, só animais... Retomando o mundo. Seria algo entre eles e nós? Qual ano estamos? Quem somos nós?


O medo se foi com a identidade de cada um e os animais também pareciam não o ter mais, aliás estavam nos ignorando dolorosamente.... Olhando bem eram realmente belos milagres de Deus. Deus? Uma oração de agradecimento surgiu em minha mente, fechei os olhos um instante e no seguinte o abri. Por que todos me imitavam? Fechei os olhos novamente e segui pensando que nem sempre perder a si é ruim.

quinta-feira, outubro 29, 2015

espremendo



Mudam muitas murchas nuvens no horizonte
adentram meus olhos ao hesitante defronte
onde sorrisos se espalham perdidos em instantes


trovejando ecos no peito na névoa da vazão
cobrindo o labirinto da razão com corado coração

materializando milagres movidos a manifestação

mareando navegantes caminhando sobre as próprias águas

marejando o lacrimejante olhar viajante
chorando chuva concomitante coexistindo
paralelamente com outros indivisíveis simultâneos
na lágrima caída acordada com a chuva escorrida
das nuvens apertadas em minhas mãos que sonham.


(Às 22h01, Rafael Belo, quarta, 28 de outubro de 2015)

quarta-feira, outubro 28, 2015

Perda de si (parte 2)


Bati em uma superfície que fez som de passagem, fui me escorando até encontrar algo gelado, forcei para baixo e me apoiando a parede senti um lugar mais amplo... Agora me olhava no espelho. Não sabia meu próprio nome ou onde estava. Por algum motivo não me importava nem precisaria... Reinventar-me?

Acabara de nascer. (Antigamente se diria algo como milagre).

Sai às ruas e não havia ninguém. Estava tudo aberto, porém vazio. Nada de nomes. Nada era nomeado mais. Foi um dia? Acreditava ser sim a resposta. Vi milhares de animais... – Eles já estavam ali? Pareciam todos colocando algo na boca e senti como se por dentro eu imitasse aquele gesto e um rugido(?) surgiu. – Estou com fome?

Aos poucos percebi: os nomes próprios tinham sido varridos de toda parte. Não existiam fachadas, placas ou números nem em ruas nem em estátuas. Sem qualquer tipo de identificação ou localização... Teria acontecido, qual a palavra mesmo? Co... co... Colapso. Social ou total?  Estava cansado de andar. Senti, uma comoção nos animais. Algo estava prestes a acontecer.

Como se fosse sincronizado, ou melhor, combinado incontáveis pessoas começaram a surgir olhando para todos os lados. Típicas características dos perdidos. Não é? Senti um buraco me sugar para dentro de mim. Estava frio e tenso assim que percebi para onde eles iam com pressa. Todos vinham em minha direção. Ouvi um grito. Você tem que correr e mesmo cansado corri e corri e...


(Continua... última parte na sexta-feira) .

terça-feira, outubro 27, 2015

pousada


A todo momento bebemos águas diferentes
sem sabores sutis somente a intensidade da vida
transbordando sons e silêncios suavemente exigentes
posturas prontas prometendo delicadas descidas
dedicadas às passadas formas evidentes de ser vidente

voando várias visões em pensamentos de partidas
nas chegadas interrompidas pelas palavras em correntes
sopradas suavemente sob a pele adormecida
aquecida arrepiada na eterna alvorada permanente
onde revoadas de milagres pousam na gente.

(às 19h21, Rafael Belo, segunda, 26 de outubro de 2015)

segunda-feira, outubro 26, 2015

A todo momento


Os fins de semana nunca são comuns. Ao menos é a nossa esperança. Nem que seja necessário apenas para repor as energias, ter um tempo para nós mesmos e para quem amamos ou simplesmente já ser clichê desejar a sua vinda e seu prolongamento. Segunda-feira só é maltratada por isso, mas quero falar de sábado à noite.

Já canta Toni Garrido (Cidade Negra) e Lulu (Santos) que “todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite, bem no fundo todo mundo quer zoar, todo mundo sonha em ter uma vida boa, sábado à noite tudo pode mudar”. Tinha planos de casal em ação. Olhei para todos os lados e não havia ninguém, quando antes de atravessar a via um morador de rua me parou.

Encarava-me com seus olhos límpidos e azuis. É bom lembrar que a sensação térmica estava entre 13º e 14º, mas ele não tremia. Contava sua vida, do preconceito das pessoas com moradores de ruas e da sina terrível que é morar na rua – sina esta pesando também sob o filho dele. Enfatizou muito que não bebia. Várias vezes o disse e ele não fedia nem a ausência de banho.

Barbado, sincero e sorridente – vestindo um boné, roupas limpas, porém puídas e um mochila pequena de pano mostarda envelhecido - apenas me pediu para comprar algo para ele comer. Pedi para esperar, atravessei a rua e enquanto comprava uma pizza olhei novamente para toda parte e não o vi. Desatravessei a rua ainda o procurando só o vi depois de o escutar. “Não me viu é?”, perguntou rindo de mim. Não, não o tinha visto...


Não sei se fui eu quem o alimentou ou ao contrário, mas ele me agradeceu, apertou enfaticamente minha mão, perguntou meu nome (mas não disse o dele, mesmo eu me sentido familiarizado e que realmente o conhecia), o que eu estudava, me desejou coisas boas em diversas áreas, além de falar do poder de Deus em minha vida e depois foi embora fisicamente sem sair até agora dos meus pensamentos, afinal milagres acontecem a todo momento sem percebermos.

domingo, outubro 25, 2015

Desenterrando o gigante (resenha)


Uma década de vida faz de uvas vinho do melhor quando se trata de um grande escritor, Kazuo Ishiguro acordou o Gigante Enterrado com uma antiga árvore sem folhas na linda capa azul espalhando esta cor para as laterais das páginas que nos encanta do início ao fim de seu belo romance fazendo com que Axl, Beatrice, Horácio, Sir Gawain, Edwin e Wistan façam parte instantaneamente das nossas vidas.

Já é um dos melhores livros que li na vida penetrando nas sua mente nas primeiras frases: “Você teria que procurar por muito tempo para encontrar algo parecido com as veredas sinuosas ou os prados tranquilos pelos quais a Inglaterra mais tarde se tornaria célebre.” Kazuo pega nas nossas mãos como um amigo querido nos levando a acompanhar a saga do casal de idosos e a importância do esquecimento.

Uma terra pós Rei Arthur onde seu sobrinho, Sir Gawain, é um velho cavaleiro de armadura cavalgando em Horácio seu fiel amigo. Vamos nos embrenhando nesta névoa magnífica levando as lembranças desta era medieval onde o agora é vivido aos tropeços em uma trama escrita como histórica (e vai ficar para a história) onde a dragoa Querig é temida e crucial neste enredo.

Qual o verdadeiro papel do cavaleiro e do estrangeiro guerreiro Wistan? Este fantástico romance quase nos torna o barqueiro e sua função de atravessar o rio e o mar recheado de amor, amizade e valores. Uma coisa é certa, sobre esta obra-prima: é impossível tirar narrativa e personagens da cabeça e igualmente improvável querer terminar a leitura. A vontade é nunca parar de ler O Gigante Enterrado.

Se fosse você daria um jeito de ler este livro agora porque tudo o que quero é lê-lo novamente.

(*)
·        Autor: Kazuo Ishiguro
·        Livro: O gigante enterrado
·        Copyright 2015
·        Título: original The Buried Giant
·        Capa: Pedro Kastro
·        Tradução: Sonia Moreira
·        Ficção inglesa – Escritores japoneses
·        Editora: Companhia das Letras

·        396 páginas
(*)

sexta-feira, outubro 23, 2015

Não há retornos


Andar em São Paulo não é fácil. Também não é difícil. Certo, certo é contraditório. Se você se informar bem, planejar seus roteiros, confirmar as informações levantadas e não confiar em qualquer rota do Waze (que aliás não tem culpa da nossa “inocência”) você chega em qualquer lugar. Mas, é interessante perguntar as direções e receber inúmeras respostas.

Elas vão do local exato até o básico medo de responder e aquela balançada de cabeça leste/oeste perturbada, desconfiada e com um leve “me deixe em paz”. Sem segurança alguma você segue pelo labirinto paulistano. Se hoje poucos jornalistas cumprem seu papel de consultar diversas fontes, imagine quem tem piso salarial?

Já me perdi tanto e perguntei em dobro em São Paulo. Entendi que as pessoas só conhecem a própria rota e olhe lá, um desvio pode custar horas sem um retorno porque se há um lugar onde seguir é obrigatório ser em frente é aqui. Tirando a Avenida Paulista não há muitas linhas retas por aí, então em frente é sinônimo de muitos desvios.


Mas não retornos... Porque querendo ou não, não há volta e para não ficarmos dando voltas até tontearmos em nós mesmo... Só há o adiante, a próxima chance e se não soubermos conquistar precisamos aprender urgente mesmo sendo herdeiros, coisas materiais tem prazo de validade, nós também e as respostas que obtemos fazem nossas direções.

quinta-feira, outubro 22, 2015

Tombam


Olho pela primavera para a janela
onde estão as flores? O que fizemos com o amanhã dos senhores? a idade não caminha tranquila pela manhã

a cidade pede retornos e recebe em silêncio manha
pode ser esquecida a atrocidade que nos apanha?

outubro está em outra estação
não há como nada ser normal
o calor pode chover pode florir esfriar e cair seco como o desprezo pelas árvores que tombam sem produzir som

não há nada igual mas queremos olhar a situação pela primavera e ver a idade voltar pulando a janela com flores nas mãos.


(às 15h54, quarta, 21 de outubro de 2015, Rafael Belo)

quarta-feira, outubro 21, 2015

Perda de si (parte 1)


Se pudesse ao menos enxergar... Caso houvesse grau para definir a densidade da escuridão esta seria a máxima, mas o pior é a sensação de perda e vazio gritando. Nada era conhecido... Diversas palavras levemente vagas rodavam na mente, porém não se fixavam a definição a qual pertenciam fosse vivo ou não. Não parecia haver retorno algum e não sentia vontade de retornar.

Chegando ao local de tirar o desaperto havia algo repetindo tudo o que fazia, mas não havia o estranhamento de nada, não era desconhecimento era... Falta de identificação. Fora desconectado de tudo... Inclusive... Daquela... – Desta imagem... – Este sou eu?, se perguntava, ou perguntava ao espelho, trocando o peso do corpo de uma perna para outra.

- Quem sou eu? Foi minha segunda pergunta depois viria onde estou... Enquanto passava pelo próprio interrogatório me distanciava para tentar compreender como poderia pensar e o máximo que consegui recordar foi de alguns instantes. Quando abri os olhos não havia nada, zero... Ouvia apenas a respiração... Se não fosse involuntária estaria respirando?

Os batimentos cardíacos ecoavam em meus ouvidos. Não havia pensamentos, palavras nem necessidade deles. Aos poucos teto-parede-janela-escuridão-maciez-cama se formavam na mente palavra e imagem, mas... Mas se apontassem uma cadeira e dissessem “é uma cortina”, cortina seria.


Sentando com a cabeça pesada fazendo um oito no ar a procura de equilíbrio, caiu de joelhos, se arrastou começou a engatinhar. (c0ntinua...)

terça-feira, outubro 20, 2015

companhia

acompanham-me as manhãs em um tempo que não sei definir
elas podem ser noite de repente e às vezes tanto resistir
parecendo uma ausência em mim embaralhando o dia
com cartadas de diferentes baralhos em mãos a sorrir
depois a meteorologia prevê a chuva no sol e a pele na brisa arrepia

não é mais inverno e na primavera as flores não querem cair
mas caem e forram o chão com emoção na ventania

outubro já chama novembro e corre o risco de se repetir
e se repetir fosse trazer um encontro de quem fomos e quem seremos o que a gente hoje faria?
como sou um só na coletividade acabaria começando a surgir viraria cinzas e renasceria
sem procurar retornos para frente é companhia

(às 10h50, Rafael Belo, terça, 20 de outubro de 2015)